A paisagem e o sagrado

João Urban

Março a Abril de 2020

O polaco viu o mundo e ele estava no bode

Em um dia perdido de 2016 um amigo me disse: “João Urban está no Recife, vivendo e morando!”. Pensei imediatamente em procurá-lo, me apresentar, conversar, tomar cervejas. Fiquei imaginando o que trazia o polaco curitibano ao Recife.

João Urban é uma das grandes referências da fotografia documental no Brasil,. Expôs em vários lugares do mundo. Cuba, Veneza, México, Polônia, China,França… Tem livros icônicos, publicados na Alemanha e no Brasil, além de ganhar os prêmios JP Morgan, e a Bolsa de Pesquisas Vittae. As fotografias de João fazem parte das principais coleções e acervos sobre a fotografia Brasilianista. João Urban é um Mestre da fotografia Brasileira.

Do seu trabalho sobre os imigrantes poloneses no sul do Brasil, estão fixadas em mim as fotos das comunidades que os poloneses fundaram no Paraná na virada do século 19 para o 20. Cidades que preservaram hábitos, práticas, costumes, arquitetura e a língua como eram originalmente na Polonia, na época que vieram.

Por incrível que possa parecer, aqueles poloneses e seus descendentes que João fotografou, me remetiam ao sertão nordestino. Homens e mulheres que mantinham paralisado um tempo perdido, um lugar remoto. Eram passado e presente juntos, como se não importasse o futuro. E haviam os cenários incríveis, as casas de madeira repletas de imagens religiosas, de  fotos, adereços, lembranças, identidades. As mesmas cores. Um lugar próximo do Sertão que eu havia encontrado, tão distinto da tragédia da seca e da ausência de tudo.

Por fim, foi na Arte Plural Galeria que finalmente encontrei João. O Atelier de Impressão me convidou para mediar uma conversa de João com a fotógrafa Flora Negri, numa noite incrível, junto a jovens interessados em ouvi-los e conhecê-los.

Então João partiu do Recife e nunca sentamos para aquela conversa imaginária, repleta de revelações e segredos que todos nós desejamos quando encontramos com amigos ainda desconhecidos. Agora, João volta ao Recife, nesta mesma Arte Plural, e me coube apresentar suas fotos inéditas. As fotos pernambucanas de João Urban. 

João morou cinco anos no Recife e com sua companheira Jussara Salazar frequentou a comunidade do Bode, que fica ali entre o Pina e o Cabanga, o Encanta Moça e o mangue, a antiga Bacardi e Brasília Teimosa. Com seu interesse voltado ao Maracatu Nação Porto Rico e Encanto do Pina, e o universo do Candomblé, vai nos revelando este Recife e seus arredores, com os mesmos olhos que viram seu povo atravessar o mundo e estacionar neste novo mundo. América.

Polaco - como se define este descendente de poloneses, que agora nos apresenta estas fotos, é o mesmo João que documentou a vida dos Boia-frias ou os caminhos dos antigos tropeiros do sul do Brasil, ou os religiosos de Aparecida em São Paulo.

Conhecemos agora este Recife/Pernambuco de João Urban, que igual a um estrangeiro descobrindo seu próprio País, nos mostra o que viu de mais luz da terra, dos descendentes africanos que atravessados à força pelo Atlântico, despejados nesta América com seus cantos, danças e sua fé, movem esta Nação de festa e luz.

João Urban nos traz o Recife de um caminhante pelos rios e arrabaldes, várzeas e pontes, um singelo constraste entre a cidade do mangue e a delicadeza de seus detalhes espalhados pelos muros, quintais, fachadas, janelas e suas árvores. Símbolos sagrados da sua gente mais potente. Mais pernambucano, impossível.

O polaco viu o mundo e ele começava no Bode!

Curadoria de Fred Jordão


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13 Imagens de João Urban: Ritos de uma passagem pelo Recife dos "Xangôs"

“Nagô, nagô
Nossa rainha já se coroou!...”

Ao chegar em 2013 a Recife João Urban traz consigo o mesmo olhar, ou gosto, ou ainda o saber que em terras de Espanha também sabe a sabor, gosto de gostar de aromas e cores, no caso gosto pelos saberes desta terra onde cultura, festa e religiosidade se confundem.

Profano e sagrado, ritual e dança, elaborações de uma síntese luxuosa, naquele sentido da riqueza de signos que, em Recife sopram com a brisa naturalmente.

E assim, Urban chega a estes lugares através dos tambores do maracatu, vistos e ouvidos nas velhas ruas, nas esquinas do “antigo”, soando misturados à brisa do rio e do mar entre as pontes. Recife ponte entre cultos e culturas, cultivos, tradição e a resistência que levou o fotógrafo um dia à Comunidade do Bode no bairro do Pina onde plantou seu olhar e sua câmara experientes no convívio com o humano.

Sim, seu trabalho como fotógrafo desde a resistência em 64 e posteriormente povoado de boias-frias, tropeiros e mestres da congada foi realimentado pela convivência com o baque do maracatu Porto Rico, que ali tem sua sede, no acolhimento que recebeu da rainha Mãe Elda de Oxóssi, no Ilê Axé Oxóssi Guangoubira, que hoje tem a frente o Mestre e Babalorixá Chacon Viana de Xangô e a Mãe pequena Edileuza da Oxum.

E sabe-se que os espaços e os mistérios de um Ilê são segredos da sagrada Mãe África, heranças trazidas pelo seu povo em forma de culto, com suas loas e cantos, ervas e signos, panos e palhas da costa, riqueza de saberes que só aos iniciados é permitido partilhar. Urban, pela profundidade e intensidade de seu trabalho foi aos poucos conquistando um lugar a partir de um ângulo raro nesse universo fechado, por se tratar de um espaço de ancestralidade e espiritualidade. A comunidade o recebeu e assim foi possível iniciar o grande trabalho de seis anos fotografando praticamente todas as festas, desde as obrigações de carnaval até os toques de cada Orixá na casa.

Todo esse material, imenso registro etnográfico e fotográfico encontra-se aqui representado nessas 13 imagens, nesse 13 mágico que evoca a herança afro-religiosa e afro-cultural que, por ser tão cara como registro tanto fotográfico como humano, revela o interior e a emoção entre o corpo e o espírito. Aqui encontramos a natureza em sintonia com seus elementos vitais, através do uso que o candomblé faz de um retorno às raízes mais profundas, não apenas das culturas vindas de África, mas de igual maneira da memória das culturas ameríndias, nesse caso irmanadas com sutileza e adoração pelo sagrado saber da Jurema e dos mestres e mestras.

Hoje, quando vivemos um momento em que a intolerância religiosa se apresenta de forma violenta em ataques aos terreiros e casas de culto afro-religiosos, esse conjunto de fotos significam uma atitude não apenas de resistência, mas também de respeito que João Urban propõe como o fotógrafo que desde sempre se irmanou com todas as lutas pela dignidade humana, produzindo suas imagens e sempre ombro a ombro no diálogo com o povo das ruas e nas comunidades populares. Sua passagem por Recife, portanto, traduz-se num rito único e solidário. E se reflete em não apenas um, mas em todos os terreiros e caminhadas de luta empreendidas pelo “povo do santo”. Asé!

Curadoria de Jussara Salazar

Catálogo da exposição