Deuses Ocultos

De uma estranheza íntima


As pinturas de David Alfonso são um chamado à contemplação e à descoberta. Evocando o gesto perdido de parar, ver e imaginar é que a obra desse artista cubano-pernambucano toma corpo; aliás, corpos.

Numa primeira mirada, suas figuras acenam à latino-América, em sua história, cultura e diversidade. Numa segunda, conversam com uma tradição pictórica, com o imaginário estético de um modernismo que há tempos vem encontrando suas formas de germinar nestes solos de origem indígena – do México à Argentina, do Brasil ao Equador. Numa terceira vista, por sua vez, seu labor artístico acessa uma camada mais profunda, a do inconsciente; é quando o artista pincela mulheres, preferencialmente, e homens ladeados de um repertório de símbolos particular.

Signos proeminentes desse conjunto são os olhos. É literalmente por eles que adentramos suas criações. Não somos apenas nós, mas elas, as figuras pintadas, quem nos mira. Na verdade, elas nos encaram, quando não apontam para outra direção. Nunca estão à deriva esses olhos, estão absortos, sérios e nos reclamam o ato de estar presente. A partir daí, iniciamos a jornada, de uma estranheza íntima. Esses olhares são, portanto, a chave do percurso, da viagem a que nos convida David Alfonso. Não por acaso, o pintor só considera sua tela pronta quando esses pares de retina têm algo a nos dizer. Esse “algo” se revela no entreolhar, na experiência em si, no passar aos mistérios através dos quadros. O que rege o movimento aqui é a introspecção. 

Um outro aspecto importante nesse processo criativo é que o artista – um pintor autodidata com formação em Design – não esboça suas obras, não as planeja. Simplesmente liga o som numa música e desliza o pincel sobre a tela ou o papel, cuja natureza vazia se transmuta por meio de cores escolhidas segundo uma orientação técnica e intuitiva. O “paradoxo” é que David é daltônico, mas tem uma relação muito íntima com as cores. Nesse percurso inventivo, há também a riqueza do inesperado, do “desvio” e da criatividade, posto que é reluzente, diversa e fundamental à sua poética essa vibração de paletas. 

O não planejado poderia significar aqui o fora do controle, mas não; o que acontece é que o artista vai “domando” sua expressividade com muita sensibilidade. Caso alguma parte da composição o desagrade, ele passa por cima, refaz, de modo que as texturas dos seus quadros também são resultado disso. E, assim, nos relacionamos com uma obra que encanta, seduz e também nos conduz ao que intriga, seguindo sua vocação como arte. 

Como não se baseia em modelos ou imagens pré-estabelecidas, suas pinturas não são “retratos” do mundo exterior, mas construções guiadas por uma imaginação capaz de trazer ao mundo personagens de vida própria, conectadas a elementos de uma linguagem pictórica, como dissemos antes, prenhe de simbologias: a lua invertida significa transcendência; o pote fechado traz o universo contido, a potência interior; o cachorro é a magia; o cavalo, o destino, o tempo; o galo e a faca, o masculino, ou a justiça; a ave e o peixe, a alma, ou o elemento água; as frutas, o elemento terra, o telúrico. Para ele, este é o seu “realismo mágico”, num aceno ainda ao gênero literário que se tornou a marca da literatura hispano-americana. 

Também o move contar histórias. E, para fazê-lo, David se alimenta do seu repertório cultural, incluindo desde vivências na Cuba dos anos 1980, 1990, 2000 até o Nordeste brasileiro dos 2007 em diante, onde vive desde então. Das culturas tradicionais que o atraem, como a dos ciganos e povos andinos, ou a dos carnavais, aos livros que lê, às músicas que ouve e aos filmes a que assiste, David Alfonso está interessado pelo que move a vida, em seus campos energético, místico, ancestral. Não lhe interessa o que está na superfície, mas no fundo, seja numa cápsula de “futuro” em preto e branco, seja num trio de mulheres a segurar um pote onde algo se esconde. É assim que os deuses ocultos que habitam o artista saúdam os que estão dentro de nós.



Olívia Mindêlo
curadora